Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

Cartas de Abril para Júlia – parte 3

CARTAS DE ABRIL PARA JÚLIA

De facto, as imagens da nação – e da região também, curiosamente, no contexto português – as imagens da história e da geografia do país, as imagens da cultura, da literatura e da língua – dos dois países envolvidos, o de origem e o de recepção – criavam configurações dinâmicas de extrema e difícil complexidade: todas as variáveis em mobilidade e reunidas no espaço agonista da identidade em construção – na palavra. Toda a identificação identitária surgia simultaneamente como um acto de poder do sujeito – contra a ventriloquia – e um acto de outros poderes dentro da linguagem. Sempre um processo de intersecção entre esses discursos: um processo dinâmico, condicional e contingente, tal como o sujeito e o contexto a partir do qual a si próprio se desenha, gaguejando, coxeando, nesse discurso de fronteira. E assim cheguei a Álvaro Alves de Faria.

Filho de portugueses, Álvaro Alves de Faria é detentor dos mais importantes prêmios literários do Brasil, incluindo o Prémio Anchieta, para Teatro, um dos maiores dos anos 70. Recebeu por duas vezes o Prémio Jabuti de Imprensa da Cámara Brasileira do Livro (o maior galardão brasileiro) em 1976 e 1983 e por três vezes o Prémio da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1981, 1988 e 1989, pelo trabalho no Jornalismo a favor do Livro. É ficcionista, dramaturgo, guionista, mas sobretudo poeta. Uma das vozes mais importantes da chamada Geração de 60, ficou famoso pelas sucessivas prisões durante a ditadura brasileira, por ler, entre Abril de 1965 e Agosto de 1966, publicamente, no viaduto do Chá, em S. Paulo, o longo poema de intervenção, O Sermão do Viaduto.

Não demonstrou o mais pequeno interesse em aprofundar as suas raízes quando o entrevistei em S. Paulo, em 1995. “Sim”, quando ele “era miúdo”, havia “uns retratos na sala”, “umas cartas de vez em quando” e umas “histórias contadas pelos pais”. Portugal era exactamente isso: algo que apenas existia na memória dos seus pais. Chegou a Portugal, a Coimbra mais precisamente, em 1998, para participar num Encontro Internacional de Poetas e essa experiência de Portugal haveria de transformar profundamente todo o seu processo de escrita.

Escrito de rajada, 20 Poemas quase Líricos e algumas Canções para Coimbra é o seu primeiro livro em Portugal e o resultado do processo violento desse primeiro encontro com a desterritorialização identitária e linguística. Nesse livro de poemas, assistimos à complexidade de uma expansão da identidade poética em processo, que engloba um sincretismo estrutural de espaços e tempos distintos, num encontro com a memória em que o passado (também a memória dos seus pais) é presente e o presente se desfaz permanentemente – para que todo o processo possa recomeçar. Esta destruição da memória é também a de uma parte de si próprio, que foi finalmente encontrada e que morre, “que se despede para sempre”, como podemos ler no final de um dos seus poemas (Faria, 1999: 11). Mas, nesta destruição, reside a possibilidade da nova criação, de um novo recomeço da linguagem e de uma identidade – em processo. Um processo agonista neste não-lugar de fronteira onde, após já 8 livros de poemas publicados em Portugal (os primeiros 6 agora reunidos em Alma Gentil. Raízes, recentemente publicado no Brasil), parece sempre haver uma espécie de regresso à inocência, à pura constatação de facto — como só uma criança parece capaz de o fazer. Do espanto dos primeiros livros, chegamos a uma poética do abandono: uma poesia que nega todo o excesso e em que tudo parece excesso quando olhamos para a negatividade estrutural da obra.

“Vocês têm que me deixar ser um poeta português!”, disse-me Álvaro Alves de Faria recentemente. Sendo o Outro, o brasileiro, a verdade é que Alves de Faria é também o Mesmo – pela sua ascendência e pela sua língua. Tem sido muito interessante observar, ao longo destes últimos anos, como o descentramento nómada das suas imagens vai implodindo estereótipos e dando forma a essa multiplicidade de sujeitos bem cientes da sua incompletude, da impossibilidade de uma totalização discursiva. São sujeitos que se constroem no gaguejo da repetição vocabular quase obsessiva, da paronomásia, do polypdoton, da aliteração – estratégias que pontuam os seus poemas.

A procura da imagem do que é ser português faz-se assim permanente aversão à conformidade, recusa da ventriloquia, pesquisa epistemológica e, também, epistémica – forçosamente acentuando a incompletude do processo de construção. A intertextualidade com o grande cânone da poesia portuguesa – bem presente em títulos como Inês, Sete Anos de Pastor ou O Livro de Sophia – faz parte deste mesmo processo excessivo e agonista, simultaneamente de assimilação e de resistência, de encontro e de fricção, de reconhecimento e de estranhamento.

Nas suas viagens a Portugal e através da participação em vários encontros de poetas, Alves de Faria conheceu também alguns poetas espanhóis, foi traduzido para o castelhano por Alfredo Perez Alencart, e foi objecto de uma homenagem em Salamanca, com a publicação de uma antologia em sua honra, Habitación de Olvidos, em 2007. E o que vem de acontecer é que Alves de Faria acaba de publicar outros dois livros em Portugal: um de poemas, Este gosto de sal (Mar português); e outro, que ele considera uma pequena novela pastoril, mas que eu me atrevo a chamar um metapoema em prosa, a que chamou Cartas de Abril para Júlia, um livro em que claramente a figura de Cervantes e do D. Quixote, além de Galatea e Labirinto de Amor, se fundem e se confrontam com Pessoa e/ou Caeiro para, mais uma vez, se procurar novas imagens para uma nova reterritorialização da identidade poética – que se quer portuguesa, como vimos. Aqui estamos nós pois perante as imagens, simultaneamente de fora e de dentro, de um poeta brasileiro que quer ser português. A conclusão que se nos oferece parece então revelar que: para se ser um poeta português, há que incluir nisso uma obrigatória relação com Espanha e com a literatura espanhola.

Em Este gosto de sal, e como já acontecera antes em todas as obras do que chamarei “a sua fase portuguesa” (excepção feita às duas primeiras, 20 Poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra e Poemas Portugueses, menos centradas na tradição literária e mais inclusivas de outras imagens da cultura nacional, como os xailes pretos das mulheres ou a antiguidade monumental e arquitectónica), Alves de Faria re-encena a sua relação com Portugal através da intertextualidade literária, desta feita através de Pessoa: uma relação que passa pelo desdobramento dramático e proliferador de sujeitos poéticos, numa espécie de modelo rizomático que parte da errância nómada por entre as imagens do autor português para, recusando a ventriloquia, as re-inventar, desterritorializando-as para logo as reterritorializar, gaguejando (um gaguejo que se torna bem claro na repetição tautológica a tocar o nonsense). Veja-se o seguinte poema:

2

Diante desse tempo que se reinventa,
o passar das horas que não se concluem,
a gaivota
a gaivota
a gaivota
que abre as planícies que adormecem no ar,
esse gosto do mar diante desse tempo,
já que tudo está esquecido nessa memória,
coisas que imóveis morrem para sempre,
esse espanto de se calar por dentro,
quando o grito corta a boca.

(Faria, 2010b: 5)

Veja-se como a reinvenção destas imagens – que fazem parte do conjunto dos mitos nacionais (o mar, a memória, etc.) – se pauta, mais do que pela reflexão, pela refracção (era Lévi-Strauss que dizia que a ciência dos mitos é uma anaclástica, ou seja, uma área da física, da óptica, que estuda precisamente a refracção). O carácter só aparentemente paradoxal do final (esse espanto de se calar por dentro/quando o grito corta a boca) aponta precisamente para o espaço do silêncio como o espaço de excesso, de que nos fala Lecercle, onde todas as possibilidades ainda por articular (o não-dito, o inaudito e o interdito) se fazem “grito” (som inarticulado), se fazem, também como o filósofo francês refere, violência da linguagem – e esta violência, um sintoma da forma agonista como a linguagem funciona (um grito que corta a boca). É neste corte que nasce a fenda – e diz-nos o poeta, mais tarde, “é aí exactamente que o mar está vivo” (Faria, 2010b: 29), é aí que a água escorre. O sal funciona assim como metonímia do mar português (de resto, um subtítulo da obra) – é essa mínima parcialidade que traz o Todo – um Todo de sentido – que não suportaríamos, que nos aniquilaria. Por isso, esta parcialidade mínima, nunca nos permitindo a totalidade do sentido, é o que nos protege – trata-se pois de uma parcialidade que é sempre efémera, que é sempre, e apenas, um evento. “Tudo se faz dessa morte do instante”, afirma o sujeito poético (Faria, 2010b: 27). “Especialmente em Portugal”, acrescenta ainda (Faria, 2010b: 23) – porque, em Portugal, há o conhecimento da perda, da perda na busca pelo sentido, na busca pela totalidade: “pedaços da água que se espuma/e se perde/em portos antigos de embarcações/que se perderam” (Faria, 2010b: 27).

A metonímia do sal aponta então, de forma co-substancial – tal como na primeira forma de pensamento, que é metonímico, como nos ensina Lévi-Strauss, e em que, portanto, tudo se corresponde na indissociabilidade do Todo e da parte – para o mar que é a História e a Língua portuguesas, uma co-substancialidade em que o poeta também permanentemente se faz e se desfaz, presença e, logo, ausência, e presença, outra vez, num jogo infinito de eterna possibilidade. A História e a Língua portuguesas apresentam-se como a memória, lugar onde se inscreve toda a possibilidade co-substancial do devir. Diz o poeta: “Falta-me sempre o espelho definitivo” (Faria, 2010b: 25), mas, sublinho eu, a memória continua a ser esse único lugar, o espaço do fazer das imagens – sempre fragmentadas, sempre distorcidas, sempre em movimento.

Todas as estratégias poéticas assentam assim na contiguidade, na justaposição e na metonímia – porque é sempre o mesmo lugar, não o esqueçamos. Por isso, este poeta afirma permanentemente a sua antiguidade, “sou um poeta antigo” (Faria, 2010b: 28), neste regresso ao primevo, que é também, se quisermos, ainda na esteira de Lévi-Strauss, um regresso a um pensamento e a uma linguagem arcaicos. É nesse sentido, penso, que vai também a acumulação metafórica, quase totémica. Afirma-se num outro poema, “Embora masculino, o mar de Portugal/é uma mulher” (Faria, 2010b: 87): afinal não poderia ser de outra maneira, pois trata-se do regresso à representação mais arcaica desse princípio último e absoluto da Origem e da Criação permanentes. Trata-se de um regresso ao culto da Grande Deusa, que encontramos representada em todas as civilizações primevas, e que aqui nos surge também como a própria Poesia, na metáfora da Rainha.

Assim, este poeta/nau/caravela se faz sempre outro canto (um canto que o sufoca, mas “um canto”, apesar de tudo. Faria, 2010b: 62), nesse acto de amor que é a escrita/a navegação no corpo – pelo corpo e através do corpo – dessa Rainha, que é História e Língua, Mar Português.

E chego assim, finalmente, a Cartas de Abril para Júlia, um livro metapoético, em prosa, com marcas epistolares, quase a lembrar o Vita Nuova de Dante. Trata-se de 27 variações sobre o mesmo tema de Este gosto de sal, o livro anterior, das quais apenas 12 se dirigem directamente a Júlia, na forma de carta.

E quem é Júlia? Uma camponesa de Argamasilha de Alba de quem o poeta faz a sua Rainha: o corpo – que é lugar do acto, do acto de amor que a escrita significa enquanto criação.

O jogo presença/ausência mantém-se: “Meu amor derradeiro que se mostra calado e sai ao campo para sempre, sem nunca estar a meu lado (…), que em mim o silêncio cala, a imagem mais antiga que de si nunca se fala” (Faria, 2010c: 11). Mas, se só existe ausência, a ausência não existe. Esta Rainha Júlia, esta camponesa tão indissociável da terra, é então Pura Presença, pura fisicalidade, onde residem todas as Palavras-corpos, como podemos ler na carta 4 (“Camponesa, Júlia andava descalça em meu corpo, na minha pele, como se traçasse o caminho”. Faria, 2010c: 10)

Muito interessante é que Argamasilha de Alba (e a alba é também esse tempo/espaço do princípio da luz e fim da escuridão – tal como o “Abril” destas cartas pode ser isso e vice-versa, dependendo do país ou continente em que estejamos) será, segundo a lenda, o lugar de nascimento de Cervantes; e, também segundo a lenda, foi o amor a uma nobre donzela chamada Júlia – um amor impossibilitado/interditado pelo pai dessa donzela – que levou Cervantes a lançar-se na sua vida errante, de aventura e/ou de escrita. Numa edição apócrifa do D. Quixote, encontrada estranhamente em Argamasilha de Alba, uns três ou quatro anos depois da 1ª edição, existe um brevíssimo fragmento em que aparece uma personagem com este nome, Júlia, uma camponesa que surge como facilitadora de um encontro entre dois amantes que vivem um amor impossível. Esta escolha de Alves de Faria pode ser entendida como uma estratégia poética a que Charles Bernstein dá o nome de comédia: ou seja, trata-se de implodir, por dentro, a grande tradição literária e, mais do que isso, através de uma imagem que se estilhaça, quase groucho-marxianamente, na cara do leitor e/ou do crítico ou crítica (Bernstein, 1992). Muito além da ironia – que nunca abandona o modelo de representação hegemónico e que é, no dizer de Bernstein, sempre demasiado bem educada – a comédia deixa-nos sempre perdidas, sempre com a surpresa e o choque do não-reconhecível. A camponesa Júlia há-de aparecer como “mulher inexistente”, “costurada dentro de mim” (e aqui, de novo, o princípio feminino que todos os criadores levam dentro) (Faria, 2010c: 14), mas a camponesa Júlia aparece também como as mulheres da poesia – as poetas e as musas que marcaram a sua poesia (Soror Inês de la Cruz, Inês de Castro, etc.). A consciência desse feminino em si há-de aparecer recorrentemente, mas eis apenas um dos exemplos: “Ela (a rainha Júlia) nunca soube que quando eu desenhava uma face de mulher buscava nela o traço mais antigo do feminino, por ser ela mulher que em mim nascia e morria todos os dias” (Faria, 2010c: 18). Ela, imagem do Todo onde todas as partes se inscrevem, é todas as imagens/representações da mulher e do amor – nelas e por elas (o que fica muito claro na carta 6).

Tal como D. Quixote, este é um homem antigo: “Faltam-me as sílabas (…) Frases antigas que guardo num estojo da memória. Sou um homem antigo, desses que se perderam no tempo” (Faria, 2010c: 26). E, tal como D. Quixote, descreve a sua errância e o seu nomadismo poético: “Às vezes me sentia um fidalgo. Lendo romances de cavalaria, minha espada de incertezas, meu cavalo a caminhar comigo” (Faria, 2010c: 12); ou, noutro passo, claramente a reportar-se ao período dos Descobrimentos como metáfora da busca pelo sentido da existência: “me deixaste falar em ti sentimentos que em mim haviam morrido no século 15, quando saí de mim em busca do que me era permitido viver” (Faria, 2010c: 28).

Portugal e Espanha são partes do Todo maior que cabe em Argamasilha de Alba, no Todo que é a Rainha Júlia – que o poeta, repetidamente, afirma não conhecer, não existir. E, contudo, Portugal e Espanha são partes do Todo maior que é a Rainha Júlia, porque, como também o poeta esclarece: “Todas as histórias terminam, mas não termina o gesto que desapareceu” (Faria, 2010c: 48).

Do espanto – que o poeta permanentemente reafirma – passa-se então, nestes dois últimos livros, àquilo a que gosto de chamar “uma poética do abandono” e de que encontro particular eco na carta 15: uma poética que se entrega ao excesso das possibilidades a descobrir nesse espaço de silêncio, nesse espaço de presenças e ausências, de encontros e desencontros – também das línguas e culturas portuguesas e espanholas – espaço do mesmo e do outro, num agonismo que produz a refracção e a multivectorialidade. Curioso é que venha agora alguém – do espaço marcado pela violência do encobrimento – em busca, errante e nómada, do descobrimento de novas imagens e perspectivas sobre Portugal e Espanha.

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