Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

O marketing contra a poesia

Palestra do poeta paulista Álvaro Alves de Faria na Oficina de Poesia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal, dirigida pela ensaísta Graça Capinha, em 2000, e também apresentada em seminário que realizou em Belém, no Instituto de Artes do Pará, a convite do poeta João de Jesus Paes Loureiro, em 2002. Jornalista cultural especialmente na área de Literatura e crítico literário – 2 Prêmios Jaboti de Imprensa, em 1976 e 1986 – o poeta demonstra neste texto porque é considerado um combatente em favor da democratização da informação nos suplementos culturais. Como ele diz, “há muita gente sórdida nesse meio tantas vezes nefasto, leviano e mentiroso, que não tem nenhum compromisso com a cultura do país”. Afirma também: “No eixo Rio-São Paulo – descontadas algumas raras exceções – a desfaçatez é geral”. O poeta lamenta que, cada vez mais, os grupinhos vão se formando na chamada imprensa cultural, enaltecendo produções medíocres, que não resistiriam a uma crítica séria e especialmente honesta. “Fazem-se louvores mútuos promovendo e discutindo obras sofríveis na poesia e na prosa, sem nenhuma consistência literária. Isso é desanimador”.

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A poesia brasileira, salvo exceções honrosas, está mergulhada numa densa escuridão. Invadida por marqueteiros, a poesia brasileira se debate quase sem saída. Na poesia dos marqueteiros vale só o experimentalismo cultivado com a arrogância. E a palavra arrogância tem de entrar aqui porque a discussão deixa até mesmo de ser por questões literárias. É uma questão de honestidade. O jogo é de cartas marcadas, tudo com espaço garantido numa mídia sem compromisso cultural nenhum. Um jogo de favores e confetes mútuos. Uma paisagem constrangedora.

Bem diz o poeta Roberto Piva: “Só aceito um poeta experimental que tenha vida experimental. Não tenho nenhum patrono no “Posto” nem leões-de-chácara e guarda-costas literários nas redações de jornais e revista. Nada mais provinciano do que os clubinhos fechados da poesia brasileira, com seus autores-burocratas tentanto restaurar a Ordem/…/”

O mais deprimente nesse quadro de sombras é o comportamento da chamada mídia cultural, especialmente de São Paulo e Rio de Janeiro que, quase toda, se presta ao trabalho de inventar valores nessa paisagem cada mais melancólica. Poetas são inventados da noite para o dia. Uma louvação sórdida. Uma mentira jagada na cara dos que ainda conseguem pensar neste país medíocre.

O que se vê é uma festa regada com a inconseqüência que representa, no fundo, uma afronta à inteligência. Poetas brasileiros que hoje escrevem poemas utilizando palavras – é lógico – são praticamente ignorados por essa mídia que se afirma cultural, mas que é feita única e exclusivamente de e para apadrinhados que mais se preocupam com vaidades levianas do que com a poesia. É um sarau interminável de veleidades.

Manuel Bandeira escreveu que “a poesia está em tudo – tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas”. Mas de que adianta essa descoberta da poesia em todo lugar, já que ela parece pertencer apenas a alguns detentores do poder da mídia que promove quase só mediocridades, num jogo lastimável ?

Tem-se que evitar a generalização. Até porque, nesse imenso vale de lágrimas, existem poetas honestos no trabalho de elaborar uma obra séria ao homem, que sirva à vida, que sirva à própria poesia.

É muito difícil, atualmente, situar a poesia brasileira sem destacar essa desonestidade que corrói a produção poética, devidamente amparada por uma chamada mídia cultural sem compromisso com nada.

No Brasil, este é um tempo que transforma compositores de música popular em poetas grandiosos. Um deboche.

Os tecnocratas da poesia no Brasil querem a morte da palavra.
Os tecnocratas da poesia querem a morte do poema.
Os tecnocratas do poema querem a morte da poesia.

No que diz respeito ao jornalismo cultural, a época é obscurantista, digna da ditadura recente que, ao que consta e até prova em contrário, já acabou. Mas eu não tenho muita certeza disso.

A democracia ainda não chegou à informação cultural. A literatura brasileira – especialmente a poesia – vive sob a escuridão de um código censor que exclui deliberadamente, ignorando o que se chama de processo histórico.

Estou absolutamente à vontade para tratar desse assunto. Sou jornalista profissional há 40 anos, envolvido sempre na produção do jornal em seu todo. Mas sempre me dediquei à área cultural, especialmente à Literatura, o que me permite dizer – me valeu dois Prêmios Jabutis de Imprensa, em âmbito nacional, da Câmara Brasileira do Livro, em 1973 e 1983.

Venho desenvolvendo esse trabalho ao longo do tempo, quer como editor de suplementos, ou escrevendo para revistas e jornais, ou divulgando livros e autores no rádio e na televisão, particularmente em São Paulo. Assim, sinto-me à vontade para falar sobre as mazelas da política cultural de um país que se debate em dúvidas em relação a si mesmo e ao seu futuro.

A chamada mídia cultural brasileira é sombria, com algumas raras exceções, é preciso repetir. Serve quase exclusivamente a delinqüentes da poesia que detêm o poder inclusive nas universidades com uma produção medíocre de poemas que não podem ser chamados de poemas. Isso implica, também, em analisar um comportamento envolvido em prepotência e autoritarismo.

Com raríssimas exceções, a democratização da informação ainda está distante dos suplementos culturais brasileiros. Quase todos têm um AI-5 particular para exercer o seu poder de informar invenções descabidas.

Trata-se de um crime cultural.

Utilizando uma expressão do jornalismo policial, os “elementos” fantasiam textos e nomes de maneira absolutamente inconseqüente que não resistem a uma crítica responsável.

Eu só não sei se existe crítica responsável.

Os indivíduos – jornalistas e poetas marqueteiros – desconsideram Mário de Andrade, por exemplo, porque ele uma vez confessou não ter lido Ezra Pound. Como se ler o velho poeta fascista fosse fundamental para a elaboração de uma obra.

Não se trata de uma questão ideológica. Se fosse, até justificaria essa postura, mesmo que antidemocrática, dos senhores donos dos espaços na mídia cultural do Brasil, que de cultura tem apenas o rótulo, já que, na verdade, trata-se de uma confraria de auto-louvação.

O endeusamento dessas figuras pelo chamado jornalismo cultural brasileiro fere a inteligência dos que ainda conseguem pensar. São indivíduos – na verdade comparsas, no dizer do poeta Mário Chamie – que se colocam acima da própria poesia. A troca inconseqüente de louvores e bajulações entre amigos da confraria é quase sempre assinada por aqueles que dispõe, circunstancialmente, de espaço e poder num jornalismo viciado e pródigo em escrever inverdades.

Essa chamada imprensa cultural brasileira, que ignora a história em conluios, fere mais um país sempre ferido. A literatura – de maneira específica a poesia – não poderia fugir disso. Faz parte dessa violência cometida sempre pelos mesmos delinqüentes.

O poeta Mário Chamie costuma dizer que esses nomes se dizem epifânicos e apocalípticos e, por conseqüência, são também universais. Houve um tempo em que se diziam marginalizados. Na verdade, são marginalizadores. São discriminatórios. Exercem o preconceito posto em prática a favor das suas crenças e dogmas. Realizam um trabalho de confraria que envolve boicotes, chantagens e permuta de elogios e aliciamento em cadeiras de Faculdades de Letras e daí por diante.

O poeta Ferreira Gullar, em entrevista à revista “Poesia Sempre”, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, declara que estamos atravessando uma época em que a mídia passou a deter um poder muito grande. Lembra que não faz muito tempo, os suplementos só publicavam matérias pautadas pelos editores para divulgar best-sellers. É preciso atentar para isso – afirma Gullar – porque às vezes os responsáveis por esses suplementos os editam sem ter a consciência do que estão fazendo. Gullar afirma estar farto de ler textos sobre Baudelaire escritos por quem jamais leu um único verso de Baudelaire. Assinala que essa leviandade e essa ignorância são uma característica de nossa época.

Em relação ao Concretismo, com o qual rompeu, Ferreira Gullar observa: “Todo mundo conhece a opinião que tenho sobre a poesia concreta, mas, assim como os stalinistas reescreviam a história, os concretistas também o fizeram”.

Diz mais: “O grande erro da poesia concreta – e me confesso culpado por haver sido autor daquela proposta – foi acreditar que se poderia fazer poesia sem discurso, quando a linguagem verbal é, por natureza, discursiva: sujeito, verbo e objetivo. A palavra, para existir, implica vida, vivência, convivência. Essa é a palavra do poeta. A poesia só existe quando nasce de um acontecimento existencial. Se não for assim, não me interessa. E então silencio. Os melhores poemas são os que nascem da vida, são os poemas que a vida engendra”.

Recorro a outro poeta brasileiro, Affonso Romano de Sant´Anna. Ele observa que o Concretismo pauta pelo triunfalismo. A cada dia, os donos dos movimentos ficam mais eruditos. Mas não se tornam sábios. Um deles, certa vez, afirmou num delírio: “Os artistas concretos dos anos 50 fizeram mais pela liberdade do Brasil do que todos os nossos governantes juntos da era atual”.

Affonso assinala: “Como seria útil não só para os concretistas, mas para a poesia brasileira, se além de eruditos fossem também sábios. Mas eles nunca erram. Eles não errarão nunca. E isso é desolador”.

A tradução de poemas realizada pelo grupo é um caso à parte no Brasil, sempre amparado por essa tal mídia cultural. Até Maiakovski já foi transformado em poeta concreto. Quer dizer: o poema que eles dizem traduzir é uma coisa, a dita tradução resulta num outro texto distorcido que nada tem a ver com o original. E a chamada mídia cultural se cala, aceita.

Num ensaio que escreveu no meu livro “Os Rouxinóis dos Beirais”, sobre antologia de poesia brasileira contemporânea que organizei e foi publicada em Portugal pela editora Alma Azul, de Coimbra, o poeta Alexei Bueno, do Rio de Janeiro, observou que se boa parte da poesia brasileira produzida fora do eixo Rio-São Paulo – faixa industrializada que consome mais de 70 por cento da produção editorial do país – sofre, a despeito de nomes de altíssima qualidade, uma espécie de bloqueio, um ostracismo injusto em relação a esse território, podemos dizer que a poesia paulista sofre muito mais que a do Rio de Janeiro, de um bloqueio interno de quase meio século, o bloqueio causado pelas decrépitas vanguardas da década de 50, especialmente o famigerado Concretismo, que sempre se organizou como uma espécie de seita ou máfia, ignorando simplesmente a existência de todos os que não rezam por seu catecismo miserável, tomando as redações de jornais e as universidades e, se possível, demitindo e desempregando.

Alexei Bueno lembra ainda que no Brasil houve fato semelhante no período do Parnasianismo/Neoparnasianismo, daquela vez contra os simbolistas, o maior dos quais, Cruz e Souza, acabou por morrer de fome, com a mulher e os quatro filhos. “Como costumo dizer – observa Alexei – domina na poesia brasileira o “fetichismo da objetividade”, e se o Parnasianismo foi o Concretismo da República Positivista, o Concretismo foi o Parnasianismo das ditadura militar. Os primeiros se acoitaram na Academia Brasileira de Letras, os segundos nas universidades. No Rio de Janeiro, onde ninguém consegue ser tão sério e perseverante na estupidez, foram inventadas outras brincadeiras, longamente acalentadas por professorinhas com alfabetização precária”.

E a chamada mídia cultural brasileira não entra nesse assunto. Não entra porque é desonesta e alienada e serve à súcia porque dela faz parte.

Diante disso, a poesia brasileira é hoje uma questão de marketing pessoal ou de grupos. É uma espécie de negócio como outro qualquer.

Cabe aqui lembrar o poema “Política Cultural” que Carlos Drummond de Andrade dedicou a Manuel Bandeira:

O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso, o poeta federal
tira ouro do nariz.

Para concluir, cito um pequeno poema de 12 versos que escrevi numa tarde de inverno em 1993, e que pensava nunca usá-lo mas que, hoje, faz parte de meu livro “A Palavra Áspera”, lançado em 2002. Um poema, por assim dizer, pessoal e que encontrou serventia nesta explanação sobre esse tempo de sombras e autoritarismo na chamada mídia cultural, na literatura e especialmente na poesia. Chama-se “Poesia Brasileira”:

O poema é tão pouco
que mal cabe na palavra.
Tão pouca a poesia
que mal se percebe.

Não cabe no bolso de meu paletó
o poema inútil deste momento
nem a escassa poesia
do início deste verso.

Toda a poesia brasileira
guardo numa caixa de sapatos
e ainda sobra espaço
para as coisas que não desejo mais.

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