Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

Crítica 2

Poesia.net

Número 223 – Ano 5 São Paulo, quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Carlos Machado

Caros,

Paulistano do ano da graça de 1942, o poeta, prosador e jornalista Álvaro Alves de Faria publicou seu primeiro livro, Noturno Maior, em 1963. No ano seguinte, lançou nova coletânea, Tempo Final. Pouco depois, ele ganharia ampla notoriedade, por causa das leituras de poemas que realizou publicamente no Viaduto do Chá, no centro da capital paulista. Seu livro O Sermão do Viaduto (1965) foi lançado num desses recitais.

Só que, com a tomada do poder pelos militares em 1964, o tempo não era de poesia. Em 1966 os sermões do viaduto foram proibidos e seu jovem idealizador preso cinco vezes. Vazados em tom profético, os poemas do Sermão eram claramente influenciados pelos textos bíblicos:

 

Peço a solidão dentro de um vidro, /

peço a praça para morrer e um canteiro / onde cresçam estrelas  e

/ estátuas e deuses.

 

Nada de terrivelmente desagregador — a não ser a coragem do poeta de levar a subversão da poesia (a palavra poética é sempre subversiva) a uma praça já sitiada.

Álvaro Alves de Faria deu prosseguimento ao seu trabalho como poeta e continuou publicando regularmente. Em 2003, a editora Escrituras reuniu seus 16 livros de poemas escritos até então no volume Trajetória Poética. Na pequena antologia ao lado selecionei cinco poemas, todos extraídos dessa obra reunida.

Naturalmente, em 40 anos de ofício, o autor mudou e sua poesia explorou novos temas e modos de expressão. Como seria extenso mostrar todas essas facetas, decidi mostrar somente poemas de trabalhos mais recentes. Aqui estão representados os livros O Azul Irremediável (1992), Terminal (1999-2000) e À Noite, os Cavalos (2003).

Nestes poemas o autor não oculta um certo mal-estar, expresso em imagens fortes (“Nada senão a gilete enfiada na pele”) e muitas vezes uma sufocação ou ausência de saídas: “Enfim / sou um homem prático. // Já posso matar-me sem remorsos”.

O poema sem título “[A Pessoa Certa]” pertence ao livro O Azul Irremediável. Nesse texto o poeta lida com a falta de explicação ou de lógicas fáceis para a extrema fragilidade da vida.

 Nesses versos há sempre um clima de prontidão para o acontecimento de “naufrágios súbitos / desses de que não se escapa / nem há pedidos de socorro”.

 

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

Naufrágios súbitos
Álvaro Alves de Faria

 

ESTAR

Esferográficas cortam palavras

no céu da boca, como facas:

assim, letras inertes cedem ao tempo

e calam sílabas agudas.

 

Pouco áspero

será o gomo de teu verso,

esse avesso do gesto,

a poesia na xícara de veneno.

 

Pouco o nítido sentir

o líquido

de teu pressentimento

como se fosse possível

calar para sempre.

 

Nada senão a gilete enfiada na pele,

a face neutra do olhar enfermo:

enfim a planta na raiz de teu pomar,

enfim

o fim da espera, do estar.

 

OS CAVALOS NOTURNOS

 Para Lygia Fagundes Telles

 

5

Ao inventar os oceanos

não sabia das embarcações

nem de rumos

só de naufrágios inclementes.

 

Não sabia de rumos antigos

nos mapas derradeiros das viagens.

Sabia dos dias por nascer atrás das águas

em montanhas de gelo e de velas

mas não sabia de embarcações

nem de rumos

ao inventar os oceanos.

 

Só de naufrágios súbitos

desses de que não se escapa

nem há pedidos de socorro.

 

Não sabia ao inventar os mares

nem de aves que nas tardes

olham os abismos das âncoras.

 

Não sabia nem dos rumos

só de naufrágios de afogadas palavras

que não se compreendem.

 

PRATICIDADE

Para João de Jesus Paes Loureiro 

 

 Abro o guarda-chuva japonês

cinza

em cima da minha cabeça

e caminho em direção ao banco.

 

Pagarei minhas contas

olharei os olhos vermelhos

da moça do caixa

e observarei suas unhas claras.

 

Conversarei com outros clientes

sobre a vida

e direi que o governo é culpado de tudo.

 

Nunca mais esquecerei

esta mulher de boca acesa

na fila

atrás de mim.

 

Sairei depois à rua

e me sentirei um magnata

fora do tempo.

 

Encontrarei à manhã

vizinhos tristes

e direi palavras desnecessárias.

 

Enfim

sou um homem prático.

 

Já posso matar-me sem remorso.

De À Noite, Os Cavalos (2003)

 

[A PESSOA CERTA]

 A pessoa certa atravessa

a rua com seu terno branco

gravata de seda italiana.

A pessoa certa

executiva de si mesma

atravessa a praça

com sapatos pretos

meias de náilon norte-americanas.

A pessoa certa entra no prédio

recolhe dinheiro

cola na pasta

pega o elevador.

A pessoa certa

atravessa o hall

chega à porta giratória.

A pessoa certa

põe o pé na calçada

e cai fulminada

sem saber por quê.

 De O Azul Irremediável (1992)

 

ESPETÁCULO

Para Paulo de Tarso, Odete e o pequeno Nikolas

 

O salto mortal

é meu número especial

nesta tarde de domingo.

 

Não temo o trapézio

por não saber voar

sobre as cabeças

que torcem para a corda arrebentar.

 

Quando muito,

abro a tarde

falando ao respeitável público

que farei a mágica final

de desaparecer

sem nunca ter sido

visto por ninguém.

De Terminal (1999-2000)

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