Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

“Desviver” em Coimbra

Eu sou um bloco de texto. Clique no botão Editar (Lápis) para alterar o O lançamento de “Desviver”, na Casa da Escrita, em Coimbra, foi, na verdade, a meu pedido, uma espécie de encontro entre amigos. Pedi que, por motivos pessoais, não tivesse a cerimônia de um evento que seguisse as normas da apresentação de um livro em Portugal. Solicitei – e fui atendido pelo meu editor Jorge Fragoso, pessoa rara – uma reunião onde seriam lidos alguns poemas, com depoimentos curtos sobre a poesia em geral – se fosse o caso – e também sobre o livro que estava sendo apresentado. A seguir, os presentes participaram de um vinho e doces, deixando de lado o que poderia soar como uma solenidade que normalmente se exige nessas ocasiões. Pedi somente um encontro entre amigos e foi assim que ocorreu.

O primeiro a falar foi meu amigo editor e poeta Jorge Fragoso, da Editora Palimage, que disse o seguinte:

-“Não é mais uma vez, porque esta vez é única, como foram únicas todas as vezes que Álvaro Alves de Faria levantou voo do Brasil e veio, e vem, poisar aqui, neste pedaço da Terra que bem o acolhe. O poeta há muito que deixou de ser visita. Pertence-nos à casa, se de casa fazemos este lugar de existir: Coimbra. E todas as vezes Álvaro Alves de Faria nos leva na sua voz escrita por um caminho diverso. Um novo livro, uma ideia outra, uma descoberta diferente. Para mim, enquanto editor de grande parte dos seus livros, há muito também que ele deixou ser simplesmente um Autor. É uma amizade fraterna, uma estima de irmão. E, naturalmente, a sua poesia veio juntar-se a nós, apossar-se do nosso sentir, apresentar-se sempre como um bom motivo de juntar os amigos, dizer poesia, ouvir o Álvaro, beber um vinho… com-viver que é também para isso que nos serve a poesia. E eu sinto o orgulho de poder editar em Portugal um Poeta que fez da sua poesia uma forja dos ferros de suportar, que vem da resistência, no seu país. E parece que sempre nela continua…”.

Minha prima Mariazinha Santiago, professora de inglês na Universidade de Viseu, que lera alguns poemas do livro mesmo antes do lançamento, dizia que os poemas de “Desviver” exigiam atenção especial do leitor já que – como afirmou – os poemas eram inusitados por revelar um universo poético que foge ao discurso poético costumeiro.

Já a poeta portuguesa Leocádia Regalo, autora de belos livros, fez sua observação numa intervenção que passou para o papel a seguir. É a seguinte:

-“Queria dizer que a poesia de Álvaro Alves de Faria joga com a simetria, ou seja, numa perspectiva de complementaridade em que os contrários se conjugam, os pólos se atraem numa ambiguidade formalmente trabalhada em função de uma plenitude da expressão existencial. Neste livro, parece-me que cada poema precisa ser lido (e entendido) numa dimensão especular, como se o pudéssemos apreender no verso e no reverso do conteúdo do texto. Daí, a capacidade que tem o poeta de sempre me surpreender”.

O livro foi apresentado pelo poeta João Rasteiro.deste elemento.

A PALAVRA DO POETA NO ENCONTRO

Confesso que “Desviver” é um livro que considero bastante estranho em toda minha obra poética.

Nenhuma vez em toda minha vida conclui um livro e entreguei os originais imediatamente ao editor. Esta foi a primeira vez.

Entreguei ao Jorge Fragoso, da Palimage, em Coimbra, a Raimundo Gadelha, da Escrituras, de São Paulo e também à poeta espanhola que vive em Salamanca, Montserrat Villar González, que já o traduziu para publicação na Espanha.

Na verdade, nesse lidar diário com a poesia alguma coisa vinha se desenvolvendo dentro de mim, algo que eu não sabia explicar. Mas era alguma coisa que não saía de mim, dia e noite.

Até que numa madrugada pensei em viver ao contrário ou do avesso, ainda não sei dizer. Era, sim, alguma coisa que tem a ver com a elaboração da poesia, do poema, mas tinha, também, algo muito forte na questão existencial.

E dentro desse clima escrevi um poema em que apareceu a palavra “desviver”.

Senti que essa palavra tinha tudo a ver com o que eu vinha sentindo há muito tempo, nessa trajetória que não termina nunca envolvendo a poesia, essa dor da poesia, esse corte da poesia, esse sangue da poesia que escorre sempre sem que o poeta nem perceba.

Às vezes o poeta está com sua blusa branca cheia de manchas vermelhas de sangue e ele nem sabe o que é.

Fiquei algum tempo com essa palavra “desviver” na cabeça. Até que perguntei: Por que viver para “conseguir”. Por que não viver para “desconseguir”? Por que viver par “caminhar”? Por que não viver para “descaminhar”? Por que viver para “fazer”? Por que não viver para “desfazer”. Por que “viver” para viver? Por que não “viver” para “desviver”.

E “Desviver” passou a ser o título do livro que ainda estava por escrever. Dizer tudo ao contrário, a se negar no que está estabelecido e eu, particularmente, não sei o que está estabelecido. E faz tempo que não quero saber. E não quero sequer saber o que está estabelecido em todos os setores da vida.

E assim os poemas começaram a ser escritos, diariamente. Todos os dias trabalhei nesses poemas à procura não do “facínio”, mas do “desfacínio”. À procura não da “palavra”, mas da “despalavra”. À procura não da “poesia”, mas da “despoesia”. Não do “poema”, mas do “despoema”.

Além de literária e da poética, tratava-se de uma questão íntima de um poeta que é poeta 24 horas por dia em tudo que faz. Essa é minha sina, esse é meu fado, esse é meu destino. Esse é o meu “desdestino”. A minha “dessina”. O meu “desfado”. Tudo ao contrário. Tudo no que se nega, no que não é ou não pode ser. O que tem de “desser”, como se tudo se desfizesse e se desconstruísse.

E na verdade tudo se descontrói. Talvez não sendo possível desconstruir a própria poesia, quero desconstruir a linguagem poética, a “deslinguagem” “despoética”. Talvez seja isso. “Destalvez” seja assim.

Quero “desescrever” o “deslivro” com a “despalavra”, com a “despaixão”, com o “dessentir” para que tudo se “desesclareça”.

Seja como for, acho e “desacho” que “Desviver” é um livro de poesia. Não sei se isso é importante ou “desimportante”. Não sei de mim como poeta e pouco me importa saber. Chega uma hora em que tudo começa a ficar distante e a ficar ausente. Esse é o corte. Esse é o desfecho. Esse é o gesto possível. É o que ainda pode existir.

FOTOS

Levi, Fátima, poeta, Maria Clara Maia e João Rasteiro

Estudantes da Universidade de Coimbra, os jovens brasileiros Michael, de Porto Alegre, e Naiara, de Goiânia.

Álvaro com a poeta Leocádia Regalo

Poeta com Maria Clara Maia

Vídeo realizado por meu primo QUIM LOPES, que termina comigo abraçado à minha prima MARIAZINHA SANTIAGO, professora na Universidade de Viseu.

Lisboa

Percorri Lisboa, onde fui especialmente para encontrar meus amigos PRISCILA ROQUE e RAFAEL, que trabalharam comigo na Rádio Jovem Pan de São Paulo. Casaram-se e vivem hoje em Portugal. Minhas foto fazem parte de um pequeno ensaio que PRISCILA, excelente fotógrafa, fez comigo em Lisboa.

SEIS POEMAS DE DESVIVER

1

Sair da vida
como do avesso
de outra vida
desvida do que já foi
renascer
no que não há
desfazer-se em si mesmo
como o inseto
que se desvenda
sair da vida
desviver por dentro
como a sair por uma porta
igual ao que se desfaz
e se iguala ao que não é
como se não fosse
esse percurso
de se encontrar
onde reza a alma
e se dilacera
num tempo inútil
como se houvesse
ainda o pressentir
o ser da ausência
de se sumir
o ser do ser
a se punir
num só golpe
num somente
o que não resta
no que não sente.

5

Destruir-se
no desdém
descalar-se
no descaso
desescobrir-se
em desespero
que desespera
e se repassa
na sempre espera
na fúria os pássaros
que destelham a casa
as figuras
que fogem dos quadros
quebrados no chão da sala
que passam pelas portas
no fundo da vala
e depois regressam
desregressam
asas como escamas
desconhecidas
como o que não chega
e não se basta
se desbasta
desesquecer-se
do desesquecimento
que nada há a lembrar
no dessegredo
o nada a descobrir
desredescobrir
tudo está completo
no que não se descompleta
no que se determina
a face a desfazer-se
que a nada se destina.

10

Desdesligar-se
do desazul
do que se encerra
no desencanto
que desenterra
dessentimentos
desnecessários
as desdatas
de obituários
desencontar-se
em sua dívida
desfigurar-se
em sua súplica
o desrítmo
dessa música
despersonagem
do desespetáculo
desavidez
do que é ávido
a primeira vez
do que é último
desse número
que se enumera
despermanecer
no que é desprimavera.

13

Doravante
andar para trás
de costas
aos oceanos
nas tardes
das marés
andar sem ver
o rumo dos pés.

22

Desexistir
na fotografia
desimagem
do desantigo
a desigreja
a desprece
a deslágrima
o desdeus
desaceno
desperdido
na pedra
do desalento
a despedra
do acalento
o calendário
que se apaga
despoema
em um diário
o gesto inútil
na mão precária
desoceano
na desmúsica
sem sua ária
desfazer-se
do desmomento
do que resta
desse instante
desprosseguir
adiante.

26

Desperceber-se
na fotografia
o chapéu
da vida
o chapéu do dia
na desfotografia
do tempo passado
desantigo rosto
que não se conhece
na cicatriz
que aparece
e se desencanta
no encantamento
como se assim
fosse merecer
desmerecido
merecimento.

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