Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

Graça Capinha 2

"É NULO PENSAR QUE A POESIA POSSA"
Parte 2 de 3

Graça Capinha
Da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal.

[Mulheres do SHOPPING. São Paulo: Global Ed., 1988, p.49]

Em O Azul Irremediável, em meu entender, a obra mais profundamente metapoética de Alves de Faria, o silêncio irá acentuar-se, num minimalismo em que o carácter aforístico e a tradição oriental do haiku jogam com a materialidade do texto na exploração da cadência dos ritmos e da aliteração:

 

Vagos são os dias vagos,

os vãos o verbo as vindas vagas vigas

a vida vaga

vagas são as plantas

os dedos mortos vagos

os dedos mortos

vagos são os mortos

apagados no branco do olhar

vagas são as letras

o sentido a terra a água o fogo

vago é o gozo o prazer é vago

na vaga beleza que preenche o vaso

mas não completa a imagem.

 

[O Azul Irremediável. São Paulo: Maltese, 1992, p.43]

 Já em 1998, Gesto Nulo reafirmará o compromisso entre a poesia e o político, mesmo e quando todo o acto poético parece inútil. Encontramos poemas de um imenso pessimismo e desencanto que nos reportam, logo desde o título e pela distanciada elegância formal, ao Eliot de “The Hollow Men”, que diz “entre o gesto e o acto cai a sombra” (“Between the motion/ and the act/ Falls de Shadow”). Só que o gesto nulo é, para Alves de Faria, o gesto ausente: a ausência da acção. Daí, e de forma só aparentemente paradoxal, a necessidade da inutilidade da poesia:

 

O gesto é nulo

no espaço livre da mão.

Nulo como o poema

que nulo insiste

na trajectória suicida.

O gesto é nulo

sempre será nulo

entre o olhar e o objecto.

Sempre será nulo

entre a cama e o corpo.

O gesto é nulo e nele

se conclui um aceno interceptado

como ave abatida

num vôo sem volta.

 

O gesto é nulo

como é nulo

imaginar que a poesia possa

interceder sem saber em quê.

Nulo o gesto atravessa o gesto

e se perde nas residências antigas

das pombas que não existem mais.

 

O gesto nasce do gesto

quando se constrói

num sinal imperceptível.

A mão escorre pelos azulejos

como vítima de um crime

e desliza pelos rodapés

como insetos cruéis.

Sem o gesto a mão não é mão.

 

Sem a mão o gesto se anula

e nulo o gesto não se faz.

O gesto é nulo dentro da casa

onde as pessoas morrem

nos porta-retratos.

O gesto é nulo

na sala de estar

onde não há mais ninguém.

 

[O Gesto Nulo. Curitiba: Ócios do Ofício, 1998, pp. 7-8]

 

Finalmente, e depois de uma apresentação tão breve desta obra tão diversificada e tão permanentemente inovadora de si própria, regresso ao início do meu texto para falar sobre este novo livro.

 20 Poemas quase Líricos e algumas Canções para Coimbra é uma obra de renascimento: de um renascimento da presença de Coimbra na poesia – agora através de um novo olhar, um olhar que é, simultaneamente, íntimo e estrangeiro – e de um renascimento de um dos lados do “eu” do poeta que parecia querer ausentar-se da sua escrita última – o lado que o prende ao gozo das palavras e a um tom mais celebratório da existência. O prazer dos sons e dos nomes aparece em longas enumerações, quase catálogos adâmicos e whitmanianos, num espanto e na alegria do “descobrimento”, que é também o de si próprio. Este poeta, filho de portugueses, já escrevia sobre Portugal – lá, sem nunca ter estado cá. Eis uma imagem de Portugal numa memória da memória, numa imaginação de uma imaginação, numa narrativa de uma narrativa:

Pôr-do-sol em Portugal

 

QUANDO O SOL se põe,

as ruas de Portugal ficam

quietas como um pássaro.

Talvez hajam barcos saindo do porto

levando o corpo de Álvaro de Campos.

Os oceanos sempre serão menores

para tantas embarcações

que partem, velas invisíveis

no longínquo silêncio

de ondas que morrerão.

Quando o sol se põe,

as mulheres talvez cantem uma canção

e talvez amem homens tristes

em alamedas distantes,

onde a memória se perdeu

e onde a música não existe mais.

Quando o sol se põe,

as casas de Portugal ficam amarelas

e todas as janelas se fecham

em adeus a todas as coisas.

Quando o sol se põe,

os passos se perdem nas calçadas,

talvez os dias não amanheçam mais,

talvez as igrejas fechem

e talvez um lábio faça ainda uma súplica

de amor.

Quando o sol se põe,

as sombras de Portugal ficam mais

nítidas,

os casais talvez chorem,

talvez sorriam,

mas isso ninguém sabe,

mas isso ninguém saberá.

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