Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

Livro de Sophia 3

POEMA PARA SOPHIA (TRECHOS)

quando a pátria que temos não a temos
perdida por silêncios e por renúncia
até a voz do mar se torna exílio

assim te peço que perdoes em mim as palavras que te digo
a caminhar Lisboa
como se morresse um pouco a cada passo
e a cada passo sei que morro um pouco,
porque a poesia é esse corte que se aprofunda sempre
e sempre se abre mais na funda raiz que nos revive,
como o olhar dos santos perdidos nos altares,
nos templos fechados ao dia que não há.

*

Tua nau, Sophia, que atravessa o mar que te cobre,
o vento que sopra partidas nas horas próximas,
a sombra que te abrange em tuas distâncias,
o cigano Cristo que te dá as mãos,
as águas que amaste com olhos de sal,
tua cidade do Porto já antiga na tua memória,
quase desaparecida palavra de um poema esquecido,
teus deuses gregos a correr ausências pelas florestas,
teu grito no grito grave do grito para dentro,
como quem fala observando os temporais.
O que nos invade é o cheiro de jasmim,
um vaso partido ao chão
e a mesa desfeita de uma ceia,
um gosto desse vinho de uvas antigas.
Assim nos é ainda possível guardar o que nos resta,
talvez uma estrofe ou um verso somente
de um crepúsculo português,
mas seja o que se possa sentir mais.
Porque assim se faz a claridade,
assim se faz o navio que se vai a sumir no horizonte,
a tal distância que tudo se torna azul,
tão profundamente azul que nem se vê.

Carta

“Inês” e “Livro de Sophia”, jóias preciosas para a minha estante, foram lidos de imediato. Quando Marco Lucchesi disse, no texto sobre o seu Inês, que você havia “escrito um de seus livros mais belos”, certamente não previu que escreveria um outro (ou já o havia escrito mas não publicado) que o superaria, este “Livro de Sophia”, que li de um só fôlego, posto que, certamente, não foi escrito para ser lido com pausas.

“Este poema que não é poema” é, na verdade, um longo poema, um grande poema, um poema-tratado poético, um poema que trata simplesmente da poesia. O poeta Álvaro Alves de Faria, ao falar da grande voz da poesia portuguesa do século XX-XXI e, muito mais do que justamente, homenageá-la, vai além, lança, metalinguisticamente, um poema-manifesto, um poema que exige que a modernidade seja moderna e regaste a tradição, com ela dialogue e reinvente-se, sem trair-se como poema nem como poesia.D

Discordando (data venia) de Graça Capinha, diria que não entendo aqui “um trabalho para um (re)nascimento da escrita e do poeta” mas verdadeiramente uma (re)afirmação do poeta que não morreu, apenas desencantou-se e ao percorrer ruas, cheiros, cores atávicas, arquiteturas de seus antepassados, (re)afirma sua poderosa poética em diálogo direto com a tradição que, mais do que nunca, ali, naquele cenário se lhe configura tão presente e tão cara.

Em Portugal você é um português que nasceu no Brasil, assim como eu sou uma brasileira que nasceu em Portugal. Estrangeiros, sempre, bipartidos, sempre. Atavismos e mestiçagem, um legítimo legado luso.

Falando de Sophia, quer lhe dizer também dos outros motivos do seu livro ter calado tão fundo em minha alma de leitora (e de poeta): Sophia morreu num dia 2 de julho, dia do meu aniversário (um aniversário, como se vê, triste, pois os poetas de nossa admiração são nossos irmãos e é assim que os sentimos, próximos e irmanados).

Na minha penúltima viagem a Portugal, abril de 2007, como sempre faço (elejo um poeta para nortear minha viagem), elegi Sophia para ser “minha guia” naquela Primavera. Fui com a intenção de comprar toda sua obra (possivelmente aquela “branca” que você menciona) criteriosamente publicada, livro a livro, pela Editorial Caminho. E assim foi: ia comprando um livro aqui, dois acolá, e ao fim da viagem, tinha adquirido e lido toda a coleção (completei a coleção, como não poderia deixar de ser na magnífica livraria Lello, do Porto, sua cidade e fui ler, ao lado de amigos, poemas seus no Café Majestic, outro ex-libris da cidade dos tripeiros – e dos poetas).

Assim, essa inesquecível viagem transcorreu sob o signo de Sophia, que agora, por essas sincronicidades de que só os mistérios da poesia dão conta, é (re)lida dessa maneira apaixonada e apaixonante com que você a homenageia e (re)escreve.

Agora quem diz sou eu, que sou sua leitora desde a adolescência, que tentei “imitá-lo” a princípio e, por fim, segui meu caminho, por caminhos poéticos transversais, mas sempre cúmplices: você (re)escreveu ali, em “Livro de Sophia”, a síntese de sua obra, o que de melhor há nela. Parabéns, sinceros da leitora e amiga de sempre.

Dalila Teles Veras

23.11.2008

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