Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

O Tribunal

DEPOIMENTO

O romance “O Tribunal” foi escrito quando eu tinha apenas 24 anos de idade. Escrevi quando o DOPS proibiu definitivamente os recitais públicos de poesia que eu fazia no Viaduto do Chá, no centro da cidade de São Paulo, com microfone e quatro alto-falantes. Fiz nove recitais no local, depois do lançamento de meu livro “O Sermão do Viaduto”, com a participação de vários poetas da chamada Geração 60 de Poetas de São Paulo. Foram nove recitais e cinco detenções pelo DOPS. O Sermão do Viaduto foi proibido de vez no dia 9 de agosto de 1966. Em setembro desse mesmo ano escrevi “O Tribunal”. O livro só foi publicado só em 1971, pela extinta Editora Martins de São Paulo. Perto de dois anos depois saiu uma nova edição. E a seguir várias outras, muitas clandestinas sobre as quais eu não tinha controle. Pequenos capítulos de “O Tribunal” eram mimeografados e distribuídos entre as pessoas. Muitas vezes foram colocados, por exemplo, nos murais das várias faculdades da Universidade de São Paulo. Com 24 anos eu já era jornalista e universitário. Tinha uma vida dupla, o que me levou a ser preso outra vez em 1969, depois que o DOPS descobriu que era eu quem desenhava os cartazes do Partido Socialista Brasileiro, então na clandestinidade. E descobriu através de uma exposição de pintura e desenhos que fiz no Instituto Graal, na rua Cardoso de Almeida, em São Paulo, que era ligado aos freis dominicanos da Igreja das Perdizes.

Desapareci por um longo tempo. Foi um período duro, violento. Hoje vejo “O Tribunal” mais atual que nunca porque, para mim – (é um sentimento pessoal) – as coisas que sonhei não eram essas que vejo com amargura. Sou fundamentalmente poeta, mas tenho vários romances publicados, três deles autobiográficos, relatando os ferimentos que não se apagam da ditadura. A Editora LetraSelvagem, do escritor Nicodemos Sena, vai publicas esses livros. Começou pelo “O Tribunal”. No ano que vem, “O Defunto – uma história brasileira” e, a seguir, o mais amargo de todos, “Autópsia”, que começa comigo no Instituto Médico Legal para reconhecer o corpo de Marinês, uma namorada que suicidou-se. “O Tribunal” é uma história de amor e desespero no meio da escuridão. Mas é uma história de amor para se ler nas entrelinhas. A desesperança sempre está nas entrelinhas

O AUTOR E A SUA OBRA

Nicodemos Sena, Editor

Já em 1971, ano da primeira edição de O Tribunal, (Editora Martins-SP), Álvaro Alves de Faria, com apenas 29 anos de idade (nasceu em São Paulo em 1942), era considerado “um dos escritores jovens mais conceituados” do Brasil, como informa o jornalista Durval Monteiro nas orelhas do livro.

 Iniciou, em 1965, o movimento de recitais públicos nas ruas e praças de São Paulo, quando lançou o livro O Sermão do Viaduto, um comício poético em pleno Viaduto do Chá, então o cartão-postal da cidade. Com um microfone e quatro alto-falantes realizou nove recitais no local e essa atividade desagradou aos militares que haviam usurpado o poder em 1964.

Em 1966, os recitais poéticos no Viaduto do Chá foram definitivamente proibidos, ano em que escreveu O Tribunal, com apenas 24 anos de idade. Devido a esses recitais, o poeta já fora preso cinco vezes acusado de subversivo pelo DOPS (Departamento de Ordem Pública e Social). Voltou a ser preso em 1969, por desenhar os cartazes do então clandestino PSB (Partido Socialista Brasileiro).

 Com o fim dos recitais públicos, Álvaro Alves de Faria concentra-se numa intensa atividade poética – que também era essencialmente política – por meio de recitais de poemas em colégios, ginásios e faculdades, e, ao mesmo tempo, vai ruminando novos livros. O Tribunal é sua primeira incursão pela prosa de ficção. Nas orelhas da 1ª edição, Durval Monteiro, colega de jornalismo e amigo de infância do escritor, informa como se gestou o livro:

 “Está aí O Tribunal, depois de sete anos de isolamento. (…) Eu vi o livro nascer, crescer dia a dia, palavra por palavra, silêncio por silêncio. Acompanhei todo o trabalho de estruturação deste livro e senti a preocupação terrível de um poeta, de um escritor diante de sua obra, de seu depoimento. E sei que o Álvaro, como homem, como seu próprio personagem, está presente em todos os momentos deste livro. Com seus cabelos compridos (isso é importante?), sua angústia, sua visão profundamente caótica do mundo. Na verdade, eu sei, O Tribunal é a opção de Álvaro em relação à própria literatura. É uma palavra de coerência do começo ao fim do livro.”

 E o amigo de infância continua: “Ele se propõe (e isso não é novo nele) a ser um escritor marginalizado. Consegue. Ele, tenho certeza, continuará falando das coisas que vivem dentro de si, marginalizado ante o caos do século, numa difícil e jovem linguagem que não ficará perdida na confusão dos nossos dias: ele não está falando sozinho. Estas coisas todas, não é absurdo dizer, serão analisadas mais tarde, à luz da História.”

Ao escrever sobre O Tribunal, na época, Lygia Fagundes Telles observou: “Em que laboratório físico-químico se processará a operação de separar o corpo do espírito? Esse estilo raro encontrei em O Tribunal. Novela? Romance? Um texto diferente, estranhíssimo, num tom confessional mas sem cair nunca no monótono, no banal. Perplexidade. Busca e fuga num enrodilhado de perguntas sem respostas, as palavras tão palpitantes e sob a pele das palavras, as ideias pulsando como um coração no fundo de cada uma. Prosa poética no seu mais alto sentido sem concessão alguma. Sem desfalecimento”.

Lygia Fagundes Telles escreveu ainda: “Nunca me senti certo de qualquer verdade senão percebendo claramente a sua beleza – escreveu Keats, o poeta que mais insistiu em colocar na raiz da beleza a própria verdade. Álvaro Alves de Faria no seu tom às vezes possesso, delirante, busca essa verdade e consegue tocá-la, o que faz de O Tribunal um documento inquietante, porque a verdade é sempre inquietante. Se o reino da poesia é o da síntese, o da prosa é o reino da análise e nessa análise Álvaro Alves de Faria desce fundo sua âncora que atinge todo o turvo emaranhado das paixões”.  

Álvaro Alves de Faria é um daqueles autores cada vez mais raros, que têm um compromisso com a Literatura. Tem uma verdade a dizer. Uma verdade quase toda vivenciada. A tortura e morte são duas personagens que rondaram a sua existência, deixando amargas lembranças, que o artista, com a sua alma gentil, procura afastar do caminho. E, para dizer essa verdade, lança mão de todos os recursos e todos os gêneros literários, com o mesmo zelo e profundidade.

O Tribunal não é propriamente o que se poderia chamar de “um livro brasileiro”. Poderia ter sido escrito em São Paulo (como o foi), Paris, Tóquio, Nova York ou em qualquer cidade do mundo. Uma coisa universal. É isso que está interessando, conforme disse o próprio poeta em entrevista nos anos 70.

Em 1976, publicou outra novela, O Defunto – uma história brasileira (Editora Símbolo-SP), mais um texto contundente e visceral, que mostra um tempo de violência e desencanto, de mortes, angústia e desespero, em que o homem é massacrado em cada gesto, sem nenhuma perspectiva diante do clima que então se apresentava no Brasil e no mundo.

Também em 1976 surge a 2ª edição de O Tribunal, (Editora Símbolo-SP), trazendo o consagrador prefácio de Geraldo Galvão Ferraz (1941-2013) onde este afirma:

“O Tribunal mostra um personagem que avança pelos meandros de uma selva escura, através de barbáries e miséria, lutando pela consolação desse sentimento positivo – o amor. Mas esse internar-se pelo labirinto é elaborado por um espírito penetrante e talentoso, resultando daí esse livro, representativo da melhor literatura que se faz no Brasil. E, mais do que nada, um livro que provoca, perturba e faz pensar. O que pode haver de mais importante numa obra de arte?”

Em 1986, com a mesma força de expressão e contundência estilística, retorna ao romance, com Autópsia, (Editora Traço-SP), avalizado com a participação de José Louzeiro, autor do texto de orelhas, onde afirma:

 “Mas, afinal, o tema central desta obra do poeta Álvaro Alves de Faria é o homem e suas contradições, angústias e perplexidades, diante de um mundo sem alternativas, de ideias doentes e ferimentos abertos. Esse tempo talvez seja passado, mas é inegável que ainda estão entre nós seus vestígios e essas marcas de muitas feridas abertas na violência, no esmagamento dos direitos fundamentais da vida humana.

O romance nos passa diante dos olhos como um filme sinistro, feito de fatos que, muitas vezes, ultrapassam a própria realidade, para desabar pesadamente onde a vida se torna totalmente impotente diante dos massacres, a impotência ainda lúcida de não se saber o que é a loucura ou a angústia de enlouquecer.

Autópsia é um livro dramático retratando um tempo brasileiro de desespero, com uma linguagem sempre caminhando lado a lado com a poesia. Depois de dez anos, Autópsia salta da gaveta como um dilacerante grito de dor.”

Com efeito, num período da História brasileira em que tanto se precisava ouvir as vozes dos encarcerados e emparedados pela truculência militar, Autópsia, inexplicavelmente (seria mesmo inexplicável?), permaneceu engavetado por dez anos até que veio a lume, em 1986. O escritor e jornalista Renato Pompeu (1941-2014), que assinou o prefacio, se pergunta: “Por que o romance de Faria – autor bem conhecido, de vários outros livros – teve dificuldade para ser editado? Seria por ser crítico em face das autoridades? Seria por ser crítico em face dos militantes?”  

Autópsia é uma poderosa narrativa-documento de um tempo de sombras e de morte, em que insidiosos e cruéis insetos se alimentam de carne humana. Os insetos odeiam a luz. A tarde está cheia de insetos e aracnídeos. Mas esse romance de Álvaro Alves de Faria também joga luz sobre o ambiente abafado das redações dos grandes jornais brasileiros, numa época de censura. A morte, com seus múltiplos tentáculos, aniquila corpos e mentes.

A resposta à pergunta de Renato Pompeu salta com força e clareza: Autópsia – “esse romance a um tempo belo e militante” – foi longe demais ao revelar as entranhas de um sistema apodrecido e degenerado e, ao mesmo tempo, manter-se crítico em relação aos que, na sociedade civil manietada, quedaram-se omissos ou rastejantes diante do poder.

O poeta Álvaro Alves de Faria é autor de vários romances. Além deste O Tribunal, os outros dois aqui mencionados – O Defundo – uma história brasileira e Autópsia – serão publicados pela Editora LetraSelvagem.  

Da Geração 60 de Poetas de São Paulo, Álvaro Alves de Faria publicou mais de 50 livros, incluindo poesia, novelas, romances, ensaios literários, livros de entrevistas com escritores e é também autor de peças de teatro, entre elas “Salve-se quem puder que o jardim está pegando fogo”, que recebeu o Prêmio Anchieta para Teatro, um dos mais importantes dos anos 70 do Brasil. A peça foi proibida de encenação 15 dias antes da estreia e ficou censurada por seis anos. Como poeta, recebeu os mais significativos prêmios literários do país. É traduzido para o inglês, francês, japonês, espanhol, italiano, servo-croata e húngaro.

Descendente de portugueses (sua mãe é de Famalicão, Portugal, e seu pai de Lobito, Angola), com sua “alma estrangeira” há 15 anos se dedica à poesia de Portugal, país onde tem 13 livros publicados – 12 de poesia e uma novela – trabalho que se estendeu também à Espanha, onde já publicou seis livros, destacando-se uma antologia com mais de 350 páginas, com tradução do poeta peruano-espanhol Alfredo Perez Alencart. Costuma dizer que fugiu para Portugal por não suportar mais, sem generalizar, os rumos medíocres da poesia brasileira amparados por um jornalismo cultural de caráter duvidoso.

Como jornalista, dedicou-se sempre à área cultural, em especial à crítica literária em jornais, revistas, rádio e televisão. Por esse trabalho em favor do Livro, recebeu por duas vezes o Prêmio Jabuti da CBL (Câmara Brasileira do Livro), em 1976 e 1983, e por três vezes o Prêmio Especial da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), em 1981, 1988 e 1989.

O pesadelo do romance “O tribunal”, de Álvaro Alves de Faria

Poeta Silas Corrêa Leite

E-mail: poesilas@terracom.br – Autor do Reino do Barqueiro Noturno do Rio Itararé, Romance, Editora Clube de Autores – Blog: www.portas-lapsos.zip.net

“Ele tinha uma bala na cabeça//E com ela certamente convivia//Nada que além de si em si começa//Tudo que transforma em rímel de Poesia//Ele nunca esquecerá aquele dia//E tem na cabeça o projétil bala//Talvez ela tenha a sua serventia//Mesmo quando numa poética fala//E ainda hoje Álvaro carrega//A bala em si e nessa fatal agulha//Que é a cabeça – e nunca mais nega//O fazer poético do qual se orgulha//E assim a bala vai a ele levando//Em alvo, em culatra, em banzo e mira//Pois sabe desse butim surreal quando//Faz do Poetar um incrível arco de Lira!//”(…) Poesia Da Bala na Cabeça, Para Álvaro Alves de Faria, in, Porta Lapsos, Poemas, pg, 81, Editora All-Print, SP, Ano 2005, Silas Corrêa Leite

Conheci o literato de renome nas quebradas da resistência, Álvaro Alves de Faria, desde as apreendências no meio algo zenboêmico do subway sobrevivencial (entre as sombras perversas e as escuridões tenebrosas) de uma então desvairada paulicéia nos escombros funestos do monturo da chamada canalha de 64 (o medo do comunismo criando monstros); a corrupção institucionalizada nos terríveis podres poderes já bancando a tal “revolução” de primeiro de abril de 64, e, muitos anos depois, quando, aqui e ali lancei alguns dos meus livros de eterno escritor “emergente”, mesmo tachado de “neomaldito da web” pelo Site Capitu e em seguida pelo próprio Antonio Abujamra (Provocações/ TV Cultura de SP), quando ele, o escritor e jornalista Álvaro Alves de Faria teve a generosidade de me entrevistar por mais de uma vez na Rádio Jovem Pan de SP, a respeito de meus poemas e desvairados inutensílios afins.

Também tive o prazer de revê-lo quando do lançamento de obras pela LetraSelvagem Editora na Casa das Rosas na Avenida Paulista em SP. Lá estava Álvaro Alves de Faria sempre sereno e cândido me contando de novos livros, de outros sonhos, de trabalhos lançados em Portugal, onde é também muito valorado. Nessas idas e vindas, sabendo-o de trabalhos anteriores, fiquei vivenciando a expectativa de conhecer sobre o seu comentado romance O TRIBUNAL, que estava fora de catálogo desde as primeiras edições nos anos 70 (época notória de trevas no Brasil de uma ditadura militar incompetente, corrupta, violenta e senil), porque sempre liguei o nome a obra, e ambos à postura ético-cidadã do artista criador enquanto ser humano e cidadão. Ele era daquele tempo (dizia a lenda dos noiteadeiros e notívagos de esquerda) em que fazia poemas contestatários, reproduzia em estêncil ou xerox, e depois lá em cima de arranha-céus da capital paulista entrevada soltava as granadas de versos de resistência, na sua trincheira de esperança por uma democracia ainda que tardia, e teria sido preso por isso, daí talvez, a bala na cabeça, a lenda, o mito, e por isso que muito antes de sabê-lo pessoalmente produtivo e de alto nível criacional, soube a respeito dele nas quebradas de Sampa, e escrevi o poema que o homenageia até mesmo por isso também. Afinal, temos orgulho de plantadores de sonhos no historial do Brasil.

Assim, honrado pela oportunidade, tomei-me de presto a ler nesse clima o romance O TRIBUNAL, LetraSelvagem Editora, 2015, 88 páginas; desse tamanho e enorme documento. E fui fundo, quero dizer, fui rasante, e quando me vi, estava dedilhando as profundezas da obra. Desvelador de Sombras, diz João Antonio (ùltima capa do livro). “… texto diferente, estranhíssimo (…) Perplexidade e fuga (…) sem desfalecimento” diz Lygia Fagundes Telles também no mesmo espaço. Entrei de cara lavada na obra (alma?) do escritor, que foi, sem trocadilho com o nome do mesmo, “alvando” minha mente, memórias, labirintos, bastidores… Ora direis, “almai”-vos uns aos outros, como eu também vos “almei”. Ora direis, ouvir estalos, rupturas, frisas, flancos… Desvelador de sombras, pesadelos, escuridões humanas, feito um tribunal de loucos julgando sãos – feridos venceremos? – grades na alma saltando impropérios, azedumes, dezelos, ah a própria cela de existir… E quando a epiderme é a cela? Depois ter de sobreviver… depois regurgitar, e eis a obra, o homem, os sobrevivente de antes, de um tempo chamado terror…

 As paredes dos relatos? Feitas com tantos olhos. A tormenta abatendo sobre nós, e, pior, muito pior, termos que manter os olhos bem abertos, e contar, a alma trincada e contar, as mãos vazando delírios, resmas, flancos, guirlandas de lágrimas, feito um monólogo de vários tempos, de várias aberturas, de tantas feituras e feitios, feito novela-romance, contação de sangria desatada. Tribunal? Há um clima pesado. Há um pesadelo no ar, no livro, na escrita, e os gatos podres que estão nele querem comer os seus olhos, para que você não veja; e os seus olhos verão o quê? Os arames se rompendo da estrutura do seu corpo (cabeça, tronco, membros) todo? E as suas mãos, que não param de escrever, como uma rapsódia em fuga, um distrato como fobia, com um medo-rabo, como qualquer coisa que paire sobre uma realidade substituta que ainda assim queima e dói e reina, e você a traz e tem… como uma narrativa-documento, purgação, chorume, sob as coxias de bastidores que ainda sangram…

 Qual é a pena máxima mesmo? Sobreviver apesar de? Apesar de tudo? Algemas e lances de escadas para cima e para baixo. O interrogatório ainda está no ar das páginas, meio Kafka, meio Borges, meio Nietzsche, ou até mesmo uma nova versão latino-tropical de um quase monólogo insurgente de uma nova visão do filme O Homem de Kiev? Tocando os pés e as mãos, mastigando consciências, remorsos-víveres (como fibras num tear de irrigação memorial), e a contação, a narrativa que entra e sai do delírio para uma dura realidade substituta… “De morrer pela pátria/E viver sem razão”(…) diria o hino da época, de Geraldo Vandré, em “Para Não Dizer Que Não Falei de Flores…”. O sol a nascer… vendo (?) o sol nascer quadrado… ah, depois o sol-livro, é só uma questão de tempo… O fósforo acendendo cenas, querendo ver o cisco pegar fogo, e dar-se na revelação do circo armado de um tempo, um lugar, também meio Brecht, meio Neruda, meio Lorca, mas, ainda assim a assaz sina de um tempo que hoje, só hoje, detona uma anistia que perdoou mas não devolveu, mas, agora, dessa forma literária pelo menos pode dizer o nome, a metáfora, que pode ser ausência, morte, impunidade, ou ainda como em Kafka também, um processo, um tribunal, entre urubus e máscaras. Há os que não sobrevieram. E deixaram cartas-testamentos: “Quando secar o rio da minha infância/Secará toda dor. Quando os regatos límpidos de meu ser secarem/Minh’alma perderá sua força. Buscarei, então, pastagens distantes – lá onde o ódio não tem teto para repousar. Ali erguerei uma tenda junto aos bosques. Todas as tardes me deitarei na relva e nos dias silenciosos/Farei minha oração. Meu eterno canto de amor: expressão pura da minha mais profunda angústia. Nos dias primaveris, colherei flores para meu jardim da saudade. Assim, externarei a lembrança de um passado sombrio”. (Frei Tito de Alencar.)

 A LetraSelvagem reedita bem oportunamente esse livro clássico, histórico, e é como se tentasse também com essa escavação de retrazer retalhos de sentir de um tempo macabro, e assim também trouxesse um importante documento literário à luz da democracia, da liberdade, quando o Brasil afinal está sendo (e precisa) ser passado a limpo, e talvez todos nós de uma forma ou de outra estejamos compondo uma bancada, um tribunal de júri, um julgamento, e precisamos de testemunhos-livros, de provas historiais; que precisamos sim, conhecer, entre os camburões, como novos navios negreiros (EMICIDA), e assim passar aqueles tenebrosos tempos a limpo, a própria mancha que foi essa ditadura, entre outras, como o da mídia agora, quando precisamos do sonho de uma justiça igual para todos, em que não sejamos meros marionetes dopados a assistir julgamentos-circos, antecipadas sentenças publicas, sumárias sentenças parciais, tribunais do crime, e que registrem, como o livro de Álvaro Alves de Faria a pontilhar hipocrisias, desmanches, pinceladas de horror e dor, de vazios e preenchimentos ins-pirados, entre meandros hostis, tendo de um lado parte de uma sociedade pústula, facção de uma história como remorso, talvez até de uma literatura datada que à época pode não ter sido devidamente valorada porque colocava dedos sangrando e mãos armadas de palavras em feridas vivas de impunidades por atacado, tantas mentiras customizadas dessa mesma hedionda ditadura que só posou de inocente no crime organizado do poder, não puniu ninguém. E uma resolução da ONU diz que o povo deve se voltar armado contra ditadores, não que esses mesmos abutres ditadores se auto-anistiem… O Tribunal, o romance, é uma ferida aberta que grita, regurgita, mais do que um vagido, um testemunho feito, aqui e ali, um monólogo capitular, um soco no estômago, um baita jab literário de quase noventa pgs, peso grave, um grito pasmo, uma vereda de dizer que, sim, sobrevivemos. E a arte vem dar seu testemunho nessa obra, desse nível, o que nos leva a Bertold Brecht, num de seus melhores (terríveis) poemas dando testemunho daquilo que era a escória humana de sua época: “Aos que vierem depois de nós” //Realmente, vivemos muito sombrios!// A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas// denota insensibilidade. Aquele que ri// ainda não recebeu a terrível notícia//que está para chegar. (…)// Que tempos são estes, em que// é quase um delito// falar de coisas inocentes.// Pois implica silenciar tantos horrores!(…)// Também gostaria de ser um sábio.// Os livros antigos nos falam da sabedoria(…)//Vivemos tempos sombrios(…).//No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.// A palavra traiu-me ante o verdugo(…)// Vós, que surgireis da maré// em que perecemos,// lembrai-vos também,// quando falardes das nossas fraquezas,// lembrai-vos dos tempos sombrios// de que pudestes escapar(…).//Quando havia só injustiça e nenhuma indignação(…)//Vós, porém, quando chegar o momento// em que o homem seja bom para o homem,// lembrai-vos de nós// com indulgência. (Bertolt Brecht)

 O TRIBUNALO romance(?) O Tribunal, de Álvaro de Faria, foi escrito no curtume da pelanca da Ditadura. Hoje, para nós que vivemos e sobrevivemos depois daquilo, ao ler o livro nos sentimos como parte do processo como um todo, da luta como sal nas aragens, da sobrevivência possível entre o desalinho da ordem unida, entre o sangue dos que ficaram (e se perderam pelo caminho), mas a ata do O TRIBUNAL está escrita de seu modo latente, selada, registrada, em amor, esperança, loucura, dor, e, mais, muito mais, o testemunho de que podemos ser melhor do que a dor que nos deram… E contaremos aos nossos filhos, e aos filhos de nossos filhos, e diremos da pátria-mãe que foi madrasta em atos repugnantes, de São Paulo que foi estado-máfia e que bancou a trincheira dessa ilegalidade amoral pelo qual pagamos preço social até hoje, por causa da rica América Cloaca ora em decadência; e da nossa impunidade “abençoada pelo Deus e engodo por natureza”; dos que falaram em família e destruíram a família Brasil… Mas ainda restam atos, artes, gestos, livros, homens-livros, como Álvaro Alves de Faria, que conta ao seu jeito peculiar (prosa poética entre lampejos de aturdições e enlevos); em sua narrativa de sobrevivência e luz, o tribunal do tempo – o tempo, o melhor juiz (Salomão) – porque livros são almas se lavando, superações de ramos e eitos se reconstruindo, pedaços de nós, de nódoas, de panos de restos como papiros cheios de sangue, suor e lágrimas, a contarem que muito pouco pode ter mudado, mas existem os artistas, os livros vencendo os canhões, os balcões (“Brasil/Qual é o teu negócio?/Os nomes dos teus sócios” (Cazuza, Brasil). E balas em brilhantes cabeças pensantes ainda dando o que falar… o que escrever… o que arguir… o que condenar… o que delatar. “O TRIBUNAL é a opção de Álvaro em relação à própria literatura” (Durval Monteiro).

 “Perdoem a cara amarrada(…)//Perdoem por tantos perigos(…)//Perdoem a falta de folhas(…)//Os dias eram assim//E quando passarem a limpo//E quando cortarem os laços//E quando soltarem os cintos//Façam a festa por mim//Quando lavarem a mágoa//Quando lavarem a alma//Quando lavarem a água//Lavem os olhos por mim//Quando brotarem as flores//Quando crescerem as matas//Quando colherem os frutos//Digam o gosto pra mim” (Aos Nossos Filhos/Ivan Lins).

 Leiam os percalços do pesadelo que é o romance O TRBUNAL, alma lav(r)ada; leiam o estertor além do lumiar do sonho, as narrativas esturricadas de lampejos cortantes, entre estados diferenciados de tempos verbais entrincheirando memorias revisitadas, com navalhas textuais seladas no mesmo parágrafo que se estende como um quarador de vísceras; ou como granitos de gelo ácido, alguns meteoritos poéticos, cargas de desmanches e desencalhes; desencargo de consciência, relato-testemunho, feito assim até mesmo uma espécie de livro-autópsia, O TRIBUNAL. E que dessa maneira condoída em alto nível literário procurem saber sobre a dor do afeto que se encerra em nosso peito brasilíndio, tupi-davídico, afroluso; dos filhos deste solo…

Romance do Grande Poeta Álvaro Alves de Faria - Voltas no Tempo

Poeta Diego Mendes Souza, do Piauí

Poeta Álvaro Alves de Faria

Álvaro Alves de Faria reaparece vigoroso pelo selo editorial da LetraSelvagem de São Paulo. Brilhante Poeta de muitos caminhos e voltas no tempo, em seu romance das primeiras horas –  O Tribunal – imprimiu testemunho de imenso valor imagético, aplaudido por gente de proa como Lygia Fagundes Telles e Geraldo Galvão Ferraz.

 O Tribunal, escrito no clima torrencial de 1966, é romance das totalidades humanas.

 Depoimento de Diego Mendes Sousa

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Sites:

www.letraselvagem.com.br

 www.livrariaselvagem.com.br

“Esta é a capa de meu primeiro romance “O Tribunal”, que escrevi quando tinha apenas 24 anos de idade. O lançamento desta reedição seria em junho, mas por motivos pessoais ficou para 18 de agosto (2015), na Casa das Rosas, na Avenida Paulista, 37.

     Os recitais de “O Sermão do Viaduto” foram proibidos pelo DOPS em 9 de agosto de 1966, depois de cinco prisões. No mês de setembro desse mesmo ano eu escrevi “O Tribunal” que foi publicado pela primeira vez somente em 1971, pela Editora Martins, com apresentação de meu amigo jornalista Durval Monteiro, companheiro de redação dos Diários Associados. A segunda edição saiu em 1976, pela Editora Símbolo, com prefácio do querido Geraldo Ferraz Galvão, que já nos deixou, e também com apresentação do escritor João Antonio, que também partiu. E seguiram-se várias pequenas edições clandestinas sobre as quais eu não tinha controle.

     A Editora LetraSelvagem, de São Paulo, fez um contrato comigo para publicar os romances que escrevi no tempo da ditadura militar. Tenho vários romances, mas retratando esse período com uma linguagem autobiográfica são três: “O Tribunal”, “O Defunto – uma história brasileira” e “Autópsia”. A LetraSelvagem vai publicar um por ano. Essa é a capa da reedição, feita por James Cabral Valdana, uma montagem sobre o quadro “Loucura”, de Agnolo Bronzino. Transcrevo a apresentação do escritor e editor de LetraSelvagem Nicodemos Sena. Suas palavras são generosas e explicam melhor a reedição de um livro tantos anos depois.”

 Depoimento de Álvaro Alves de Faria

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Álvaro Alves de Faria e Nicodemos Sena

Publicado em 1971, “O Tribunal” é a primeira narrativa longa do então jovem poeta Álvaro Alves de Faria, testemunho fidedigno da resistência da cidadania contra o regime militar que se instalara no Brasil em 1964 e a demonstração da surpreendente capacidade humana de superação diante das mais angustiantes situações.

Lygia Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles escreveu o seguinte: “Em que laboratório físico-químico se processará a operação de separar o corpo do espírito? Esse estilo raro encontrei em O Tribunal (…) Um texto diferente, estranhíssimo, num tom confessional mas sem cair nunca no monótono, no banal. Perplexidade. Busca e fuga num enrodilhado de perguntas sem respostas, as palavras tão palpitantes e sob a pele das palavras, as ideias pulsando como um coração no fundo de cada uma. Prosa poética no seu mais alto sentido, sem concessão alguma. Sem desfalecimento”.

De maneira visceral, Álvaro Alves de Faria coloca diante do leitor um homem que, embora oprimido e estilhaçado dentro de si mesmo em razão da tortura, olha “profundamente” nos olhos sanguíneos dos torturadores e, “num instante de absurda lucidez”, se lança contra as grades e arrebenta os ferros que se enfiam em seu corpo. Um homem que, mesmo com “o coração arrebentado por uma bala” e olhos que “vão se apagando”, tenta escapar, ainda que as portas esmaguem as perspectivas de saída. E essa luta travada em ritmo de pesadelo, do personagem para manter-se vivo, ainda que noutro plano, assemelha-se à batalha do escritor para superar-se a si mesmo através de uma escritura capaz de revelar as atrocidades perpetradas pelo Estado totalitário sem cair no mero panfleto político.

Vale transcrever, a esse respeito, o texto que Geraldo Galvão Ferraz (1941-2013) escreveu para prefácio da 2ª edição de O Tribunal, publicada em 1976:

Geraldo Galvão Ferraz

“Você está para ser leitor de Álvaro Alves de Faria e logo verá porque isso será importante para você. Antes de mais nada, conhecerá uma raridade em termos de Brasil — um escritor sério, preocupado com sua obra e com a literatura. A par de sua militância como divulgador de nossa cultura, Álvaro Alves de Faria não faz literatura por diletantismo ou para conseguir um instrumento de alimentação de pequenas vaidades. Você vai ler O Tribunal, um livro que, embora tenha quatro anos, é (feliz e infelizmente) cada vez mais atual. Por que felizmente? É simples: a atualidade deste texto — seria uma imprecisão técnica limitá-lo com o rótulo de romance, novela ou coisa parecida — revela que Álvaro Alves de Faria conseguiu fazer em 1971 uma ficção voltada para o futuro, em que o arquejar frenético de um estilo acompanha a dinâmica das transformações existenciais. E por que infelizmente? É dolorosamente simples: O Tribunal parece ter surgido como um lancinante grito de dor ante os males do mundo e como uma amarga denúncia das diversas opressões que atormentam o homem de hoje.

De modo rudemente eficaz, o autor lembra as fraquezas de nossa condição e sugere a existência de uma luz no fundo do túnel profundo. De 1971 para cá nada mudou para melhor nos setores abordados pela sensibilidade de Álvaro Alves de Faria. A morte, a guerra, a falta de liberdade, a marginalização do ser humano parecem permanentes ameaças e surgem nos flashes do texto que iluminam fragmentos de uma superposição de círculos de danação. O Tribunal mostra um personagem que avança pelos meandros de uma selva escura, através de barbáries e miséria, lutando pela consolação desse sentimento positivo — o amor. Mas esse internar-se pelo labirinto é elaborado por um espírito penetrante e talentoso, resultando daí este livro, representativo da melhor literatura que se faz no Brasil. E, mais do que nada, um livro que provoca, perturba e faz pensar. O que pode haver de mais importante numa obra de arte?”

Por tudo isso, a reedição de O Tribunal se impôs à LetraSelvagem como inescusável tarefa

JORNAL OPÇÃO

42 anos

Um grito (sufocado) contra a ditadura

“O Tribunal”, de Álvaro Alves de Faria, de 1971, traz um pungente relato sobre a opressão; sua reedição em 2015 mostra a importância atual da obra, quando vozes se levantam para defender o regime de exceção da época

Álvaro Alves de Faria (1942): há 17 anos, dedica-se à poesia em Portugal, para onde se mudou por, segundo ele mesmo, não suportar mais os rumos medíocres da poesia brasileira

J. J. Pereira Coelho
Especial para o Jornal Opção

Se já foi definido pelo poeta e professor Affonso Romano de Sant´Anna, doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, como o mais português dos poetas brasileiros, Álvaro Alves de Faria (1942) também pode ser considerado um dos romancistas mais criativos da geração de 1940 na Literatura Brasileira.

 Prova disso é o romance “O Tribunal” (Taubaté-SP: Editora LetraSelvagem, 2015), escrito e publicado em 1971 à época do regime militar (1964-1985) e que constitui “um testemunho fidedigno da resistência da cidadania contra um regime ditatorial e a demonstração surpreendente da capacidade humana de superação diante das mais angustiantes situações”, na definição do editor e escritor Nicodemos Sena, autor do texto de apresentação deste livro.

 Texto que foge à classificação de novela ou romance, “O Tribunal”, primeira incursão do poeta na ficção, é uma prosa poética em tom de confissão – não fosse seu autor extremamente lírico – que surpreende ainda hoje o leitor, ao mostrar “uma personagem que avança pelos meandros de uma selva escura, através das barbáries e miséria, lutando pela consolação desse sentimento positivo”, como escreveu o crítico Geraldo Galvão Ferraz (1941-2013) no prefácio preparado para a segunda edição desta obra publicada em 1976.

 Como o bancário Josef K., de “O Processo”, de Franz Kafka (1883-1924), a personagem de Faria se vê diante de uma acusação absurda, que foge à luz da razão, ou seja, a de ter atropelado um tanque, o que lhe rende uma condenação à pena máxima. E, como a personagem de Kafka, sente-se como um inseto diante da brutalidade e insensibilidade de “um tribunal criado apenas para condenar”.

 Como a obra kafkiana, o livro é igualmente uma crítica direta ao sistema judiciário brasileiro à época do Estado autoritário, cujos malefícios sobreviveram em grande parte depois da restauração do regime democrático e que, em muitos aspectos, ainda estão presentes na sociedade brasileira. Por isso mesmo, o livro da Faria continua atualíssimo. Até porque, como escreveu Ferraz, “‘O Tribunal’ parece ter surgido como um lancinante grito de dor ante os males do mundo e como uma amarga denúncia das diversas opressões que atormentam o homem de hoje”.

 Em outras palavras: é um exemplo perfeito de sistemas judiciários iníquos, como o da história de Josef K., que não respeitam as leis e operam acima delas, de acordo com a vontade e os interesses de juízes pouco confiáveis.

Pungência

Numa época como a nossa em que alguns desavisados saem a público para defender impunemente aquele período de arbítrio, nada mais oportuno que a reedição deste livro, um pungente relato que põe diante do leitor um homem que, embora oprimido e estilhaçado por dentro de si mesmo em razão da tortura, olha “profundamente” nos olhos sanguíneos dos torturadores e, “num instante de absurda lucidez, se lança contra as grades e arrebenta os ferros que se enfiam em seu corpo”, como observa Sena no texto das “orelhas” do livro.

Ou ainda como observa o crítico e escritor Adelto Gonçalves, doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), na resenha que escreveu para este livro em 2015: “(…) como um Fiódor Dostoievski (1821-1881) brasileiro, Álvaro Alves de Faria fez um relato surreal, absurdo, de confusão entre o real e a ficção, de danação absoluta e submissão ao imaginário, construindo um mundo de sinais trocados, em que o mal está sempre acima do bem, uma descida passo a passo ao inferno”.

Gonçalves diz mais, citando trecho do livro de Faria: “Como o K. kafkiano, esse personagem sem nome avança tateando por um labirinto, em meio à barbárie e miséria humanas: “Por que o senhor atropelou o nosso tanque? O oficial me perguntou e eu o mandei para a puta que o pariu, ele e todos que inventaram aquela guerra filha de uma grande puta, eu não tenho nada com isto, eu não atropelei ninguém, tem sentido eu atropelar um tanque?”

É de se lembrar ainda que este romance é de uma fase em que o poeta era um ativista da liberdade, período que começou em 1965, um ano depois que os militares haviam usurpado o poder, quando ele passou a fazer recitais nas ruas e praças de São Paulo e lançou o livro “O Sermão do Viaduto”, um comício poético em homenagem ao Viaduto do Chá, marco da cidade localizado na zona central. Com um microfone e quatro alto-falantes, fez nove recitais no local, desafiando a ordem mantida pelas forças militares.

 Em 1966, os recitais foram proibidos e naquele ano, contrariado com a arbitrariedade, Faria escreveu “O Tribunal”, resultado de sua experiência pessoal, pois já havia sido detido cinco vezes pelos esbirros do Departamento de Ordem Pública e Social, o famigerado Dops, que o acusou de subversivo. Voltaria a ser preso ainda em 1969, acusado de desenhar cartazes para o Partido Socialista Brasileiro (PSB), então na clandestinidade.

 Contra a mediocridade

Nascido em São Paulo, filho de pais portugueses (a mãe é de Famalicão e o pai de Lobito, Angola), Faria publicou mais de 50 livros, incluindo poesia, novelas, romances, ensaios, livros de entrevistas com escritores e peças teatrais, entre elas “Salve-se Quem Puder Que o Jardim Está Pegando Fogo”, que foi proibida 15 dias antes da sua estreia e ficou censurada por seis anos pelo regime militar, depois de receber o Prêmio Anchieta de Teatro, um dos mais importantes na década de 1970.

 Há 17 anos, dedica-se à poesia em Portugal, onde já publicou 13 livros – 12 de poesia e uma novela –, trabalho que já se estendeu à Espanha, onde publicou seis livros, inclusive uma antologia com mais de 350 páginas, com tradução do poeta peruano-espanhol Alfredo Pérez Alencart.

Como observa o editor na apresentação, Faria diz que “fugiu” para Portugal por não suportar mais os rumos medíocres da poesia brasileira “amparados por um jornalismo cultural de caráter duvidoso” que, aliás, só costuma dar espaço para autores publicados por grandes editoras, de preferência de origem anglo-saxônica.

Também jornalista, Faria sempre se dedicou à divulgação de trabalhos da área cultural, tendo produzido crítica literária para jornais e revistas, além de comandar programas de rádio e televisão. Por seu trabalho em favor da divulgação cultural, recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro em 1976 e 1983 e o Prêmio Especial da Associação Paulista de Críticos de Arte em 1981, 1988 e 1989.

J. J. Pereira Coelho é crítico literário e divulgador cultural

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